Os dezoito personagens de “A queda de um anjo” são caricaturas, arquétipos humanos da sociedade portuguesa da época. Entre eles, destacamos:
1. Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda
No auge da queda, a personagem tem 49 anos. Nasceu em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.
Filho de família de sangue limpo, o pai tinha o mesmo nome, e a mãe chamava-se
D. Basilissa Escolástica. Era filho único do morgado da Agra de Freimas, bom
filho, que iniciou os estudos de latinidade no seminário bracarense. Com a
morte do pai, renunciou à carreira das letras, mas deu-se muito à leitura de
copiosa livraria. Casou pelos vinte anos com a
morgada de Travanca, D. Teodora Barbuda de Figueiroa, uma prima rica com a qual
casa com o interesse de juntar duas ricas heranças. No dia seguinte à noite
nupcial, por volta das sete horas da manhã já estava de pé nos seus
afazeres. Lia até tarde da noite noite. Entre seus livros estavam a legislação
antiga, as genealogias, etc.
Conhecia um pouco
o francês, falava fluentemente o latim e interpretava o grego com correção.
Tinha uma ótima memória pronta e era no mínimo erudito em história antiga. Sabia
detalhes sobre fatos e pessoas de Portugal. Defendia os valores e a moral do passado.
Tinha uma formação intelectual desvinculada do seu tempo, fundamentada
na leitura de clássicos (alfarrábios), que lhe dão uma formação culta, embora
desfasada da realidade. Calisto
era um homem quieto e calado. Não se posicionava contra o progresso, mas não
queria ser por ele pressionado. Na fase inicial da trama agiu como um homem tradicional,
mas após mudar-se para Lisboa, aos poucos, adere à modernidade.
O
narrador infere que o leitor construiu uma imagem equivocada da figura de
Calisto: “Calisto
Elói não é a figura que pensam”. Ele sugere que o leitor imagina a personagem
como um home grotesco e diz que de propósito não descreveu a imagem de Calisto
para que o leitor construísse a imagem da citada personagem independentemente da
narrativa. Mas o narrador continua o discurso com a descrição de alguns traços
da personagem. Calisto não era desajeitado, era magro com compleição afidalgada.
O abdome era saliente, o nariz avermelhado e o perfil curvado em razão da
posição que costumava ler. Estatura um pouco acima da média e pernas direitas.
Em 1840, aos 25
anos, aceitou a presidência municipal de Miranda. A sua defesa da tradição e a aversão às normas atuais eram tão exageradas
que, ao ser designado para governar a Câmara de Miranda, resolveu ressuscitar a
legislação dos antigos forais. Foi muito criticado e terminou abandonando a
presidência da Câmara no mesmo dia que assumiu.
É o ‘anjo’
que vai sofrer a ‘queda’ indicada no título da obra. Foi
eleito para representar a sua terra no Parlamento em Lisboa. Após ser
convencido a concorrer à eleição, resolve que vai representar seus conterrâneos
na intenção de reduzir os impostos. Após ser eleito e antes de viajar para
Lisboa, recorre aos seus antigos livros para ler tudo e conhecer melhor a
capital. Não se apercebe que as leituras desatualizadas podiam lhe trazer
alguns transtornos, como foi o caso da situação na qual procurou chafarizes com
indicações medicinais nos seus livros antigos. Terminou por contrair doenças
relacionadas à poluição das fontes lisboetas. Até partir para a capital, vestia-se
sempre à moda antiga.
O guarda-roupa era
modesto, salvo o chapéu armado. Usava calção de tafetá e espadim. Vestia-se de
briche da Golegã, e dos alfaiates de Miranda. A gola e portinholas da casaca
eram sérias demais. Usava calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola.
Ao chegar a
Lisboa, alugou
uma casa no bairro de Alfama, por saber da importância histórica da parte
antiga da cidade. Ao cabo de três dias, mudou-se para uma rua mais limpa, pois
os lamaçais de Alfama lhe provocaram um escorregão e um grande constrangimento
ao ser vaiado publicamente na hora em que caiu.
Iniciada
a vida social e parlamentar na capital, Calisto continuou a ser um rígido
defensor da moralidade. Inicialmente, manteve-se
fiel à mulher distante (Teodora). Chega a tomar para si o nobre desafio de
redimir uma filha (Catarina) de um comendador amigo seu (Sarmento), conseguindo
tirá-la de uma situação de adultério. No entanto, Calisto não imaginava que a
irmã de Catarina seria o motivo da sua
primeira tentação para a traição conjugal.
A personagem em análise chegou
à Capital e ao Parlamento com boas intenções. Inicialmente suas preleções eram
alvo de risos e reboliços no Parlamento. Mas aos poucos, consegue usar com maestria
a sua vocação para a oratória. O dom da palavra favoreceu sua
caminhada política. Queria usar seus conhecimentos para fortalecer a
moral e os bons cosutumes. No Parlamento, ficou conhecido pela
fala franca e rude. Sem temor atacava a hipocrisia e as leis aprovadas com
interesses particulares. Defendia com vigor o que julgava ser o interesse popular.
No entanto, suas preleções, ao menos na fase inicial, tornaram-se alvo de
risos, críticas e desavenças com outros deputados.
Em razão de suas preleções no Parlamento,
começou a ter o apoio de alguns parlamentares, mas encontrou também forte oposição,
como foi o caso o Dr. Libório de Meireles, que era um orador liberal de origem
pobre, mas que tinha forte influência no Parlamento. Desde que conhecera Libório,
Calisto não poupava críticas negativas ao novo oponente. Com o passar do tempo,
Calisto terminou adotando o mesmo discurso de Libório.
Certo
dia, Camilo começou a olhar apaixonadamente para Adelaide, irmã de Catarina, a
mulher que havia resgatado da situação de adultério. Chegou à atitude infantil
de escrever versos para que Adelaide lesse. Começou a mudar o estilo das
vestimentas, na intenção de cortejar Adelaide, qual não gostou de estar sendo
cortejada por um homem casado. Calisto não foi correspondido.
Calisto não
gostou de ter sido preterido por Adelaide, a qual preferiu abrir seu coração a
outro homem, Vasco da Cunha, mas seguiu
em frente. Calisto vai-se
transformando à medida que vai mudando a forma de vestir-se. A cada vez que
falava aos parlamentares mudava a impressão que lhes causava. Os camarotes do
Parlamentos eram fortemente concorridos por espectadores que queriam sorrir do
modo como Calisto vestia-se e falava ao público e suas intrigas com os
parlamentares, especialmente o Dr Libório. Aos poucos isto vai mudando, pois
Calisto começa a trajar roupas mais modernas e a usar uma linguagem mais
aproximada dos oradores mais eloquentes.
Outro fato
que gerou grande reviravolta na vida de Calisto foi ter conhecido Ifigênia, que
era uma viúva de um general (Ponce de Leão). Ifigênia procurou Calisto para
solicitar-lhe o apoio em relação a uma pensão. Descobriu que ela era uma prima
afastada. Resolveu defender a causa da prima e terminou tornando-se seu amante.
Talvez o início desse novo relacionamento, inclusive com a providência de uma
casa para a amante, tenha sido a concretização total da queda.
De Lisboa, juntamente com
Ifigênia, Calisto fez uma viagem a Paris e, embora tenha passado pouco tempo em
terras francesas, voltou a Lisboa radicalmente mudado. Passou a trajar as
roupas da moda mais recente em Paris, avançadas para os costumes lisboetas. Melhorou
ainda mais o estilo oratório, aproximando-se mais dos políticos ligados ao
governo. Começou a ampliar seus conhecimentos com a literatura francesa
moderna. Deixou o bigode e o cavanhaque, trocou o rapé pelo charuto e passou a
gastar dinheiro desmedidamente.
Esqueceu a esposa Teodora.
Ao final da história, Calisto demonstra certa
maturidade ao tratar da separação com serenidade, mesmo sabendo que isso
significaria que a ex-mulher Teodora também teria uma vida amorosa com outro
homem (Lopo
de Gambôa, um primo pobre de Teodora).
Paralelo entre a ficção e a
realidade:
- Calisto e Teixeira da Mota
(fidalgo eleito deputado e tornou-se um depravado na vida lisboeta).
- Dr. Libório e o Dr. António Aires de Gouveia
(autor de uma proposta de reforma das cadeias e que teve algum atrito com
Camilo, na vida real).
2. Teodora Barbuda de Figueiroa
Teodora
costurava com perfeição. Era
admirada pela família e citada como exemplo na região. Tornou-se noiva de
Calisto sem sofrimento, obedecendo à decisão do pai. Não ia alegre nem triste.
Tanto se lhe dava casar com o primo Calisto como com o primo Leonardo. Às sete
horas do dia seguinte à noite do casamento, Teodora já estava de pé limpando a
casa. Após o casamento assumiu a função dos cuidados domésticos da sua sogra e
a administração da casa. Prima e esposa de Calisto, com o qual casou em uma relação baseada no
interesse financeiro de aumentar o patrimônio familiar. Era uma esposa devotada
ao marido, provinciana, pouco interessante, sem graça, rude, banal, com uma
linguagem proverbial, apenas preocupada com a lida da casa e a lavoura.
Com a partida do marido para a capital, fica
responsável pela administração do patrimônio familiar. Também usa trajes antigos e
fora de moda. Tem origem rica, como morgada
de Travanca. Quando percebe que o marido a está deixando de lado, ameaça-o com
a possibilidade de separação dos patrimônios, de modo que cada um siga sua
própria vida. Quando Calisto concorda com a separação, Teodora entra em
desespero. Durante todo o enredo, Teodora faz a figura da mulher do lar,
preocupada e até empenhada nos trabalhos do campo. Da mesma forma que o marido,
Teodora também passa por um processo de queda. Depois de abandonada pelo marido,
termina cedendo aos cortejos do interesseiro primo Lopo de Gambôa, com este, em uma relação
conjugal ilícita, passa a morar e tem dois filhos.
3. Catarina Sarmento
Filha
do comendador Sarmento, casada, mas trai o marido
com D. Bruno Mascarenhas. Após a
intervenção de Calisto, arrepende-se da traição, embora não confesse ao marido.
Era leitora da literatura moderna francesa, como Balsac, que dá a entender que
tal literatura provocou péssima influência na personagem.
4. Adelaide
Sarmento
Filha
do comendador Sarmento,
solteira. Fica agradecida a Calisto por ter evitado uma catástrofe no casamento
da irmã, torna-se amiga do citado deputado, mas corta essa amizade quando
percebe que está sendo cortejada por Calisto, um home casado. Depois que
rejeita Calisto, fica noiva de Vasco da Cunha.
5. Ifigênia
Mulher
brasileira, viúva do brigadeiro Gonçalo Ponce de Leão. Embora seja uma viúva,
aos seus 39 anos, mantém-se formosa e passa a ser o objeto de admiração de
Calisto. Aproxima-se do deputado Calisto para pedir ajudar no tocante à pensão
do marido. Ao conversar com Calisto, conta sua triste história de viúva e descobre
seu parentesco distante com o deputado. Torna-se objeto da paíxão de Calisto.
Aceita os cuidados do deputado, cuidados esses que incluíram a nova casa que
ele providenciou para que ela morasse.
Aos
poucos vai cedendo à atenção e aos cuidados de Calisto. Cuidados que se
transformam em cortejo e, por fim, em uma relação conjugal ilícita inicialmente
às escondidas. Passou a receber o deputado em visitas amorosas vespertinas, a
fim de evitar o falatório da sociedade. À noite, Calisto voltava para o Hotel
para dormir e caracterizar que o casal adúltero vivia conforme os bons costumes
das famílias de respeito, visto que Calisto era um homem casado.
6. Lopo de Gambôa
É um primo
pobre de Teodora. Logo que percebeu o desinteresse de Calisto, viu em Teodora
uma ótima oportunidade para ascensão social. Teodora trata o primo com
consideração, mas mentamse fiel a Calisto. Lopo insiste e elabora um plano no
qual finge estar apoiando e projetgendo os interesses de Calisto, mas na
verdade tece uma estratégia na qual revela os atos de traição de Calisto ao
mesmo tempo em que apoia e acalenta Teodora. O plano dá certo e Lopo termina
por estabelecer com Teodora uma relação extraconjugal paroibida socialmente,
mas ao mesmo tempo é uma relação pública, pois os dois amantes passam a morar
junto e têm dois filhos.
7. Dr. Libório de Meireles
É um deputado portuense,
jovem de muita sabedoria, de trinta e dois anos, cara honesta, e posturas
contemplativas. Logo cedo, aos dezoito anos escreveu livros de poemas satíricos
contra os titulares portuenses. Não obteve sucesso como poeta. Era de origem
pobre, filho de um tendeiro, que entrara na estrada franca da fortuna próspera,
produzindo licores e aguardente de nabo. Em Coimbra, fez-se examinar em latim e
foi reprovado. Ficou revoltado com os examinadores e resolveu destes se vingar.
Começou a se autoafirmar doutor em latim. Traduziu um poema latino com tanta
clareza e fidelidade que recebeu o reconhecimento da alta qualidade de seu
trabalho. Insistiu nos estudos, formou-se e doutorou-se. Logo após tornar-se
doutor, viajou pela Europa, conhecendo novos lugares e ampliando sua
experiência e conhecimentos. Ao voltar para Lisboa, interessou-se pela
política, com a qual estreitou fortes laços, obtendo grande sucesso como
parlamentar.
É um forte
opositor de Calisto no Parlamento. É um homem balofo, afetado, pomposo e com um
linguajar complicado que gerava a irritação de Calisto. Aparentemente, trata-se
de uma personagem baseada em uma pessoa real, que seria uma tentativa de Camilo
ridicularizar o bispo D. António Aires de Gouveia, lente, ministro e par
do Reino.
Calisto
sempre insistia que não era possível compreender nada do que Libório falava,
devido ao lingajar rebuscado. Assim, o parlamento passou a ser palco de embates
calorosos entre os dois parlamentares. Mas aos poucos, Calisto vai se
aproximando dos políticos ligados ao governo ao mesmo tempo em que passa a ter
um discurso similar ao de Libório.
8. Brás Lobato
O mestre-escola,
professor de primeiras letras, secretário da junta de paróquia, e ex-sargento
das milícias de Mirandela. Concorreu e perdeu para Calisto na eleição para
representar Miranda no Parlmento. Para não ficar sem nenhum reconhecimento, foi
nomeado secretário local.
9. Abade Estevães
Era colega transmontano de Calisto. Homem
de anos e doutrinas monárquico-absolutas. Foi importante interlocutor de
Calisto na fase inicial, na qual este era rígido de espírito, em relação ao
juramento no Parlamento, absolvendo-o do perjúrio, dizendo que não era sério,
porque já de si o juramento era irrisório e mera brincadeira de nenhum peso na
balança da justiça divina. Era menos letrado que Calisto, mas era mais
experiente e capaz em crítica da história. Por delicadeza, fingia engolir as histórias
do morgado. Foi útil a Calisto logo no início do mandato como orientador em
relação ao que era adequado ou não fazer no Parlamento. O narrador chega a
nomeá-lo amigo de Calisto (p. 31). Amava a música pelo muito amor que tinha à
guitarra, delícias da sua juventude, e consoladora da velhice (chegou a levar
Calisto ao teatro, p. 34). Várias vezes advertiu Calisto da necessidade de
reformar o vestido, e entrajar-se conforme o costume. Era a única pessoa que
contrariava Calisto tentando orientá-lo. Depois que Calisto começou a viver uma
vida de traição conjugal, afastou-se.
10. O Narrador
O narrador é uma importante
personagem na obra, o qual evidencia uma forte empatia com a personagem principal,
o deputado Calisto. Em toda a trama, o narrador acompanha as atitudes de
Calisto e das demais personagens, mas o texto não deixa dúvida de que o narrador
torce pelo sucesso da personagem principal. O narrador também se funde com Camilo,
o autor da obra. Há um momento da história no qual o narrador afirma em
primeira pessoa que Camilo leu um dos livros dele (narrador), que aqui parece
coincidir com o autor (Camilo) e que provocou fortes emoções ao coração de
Calisto.
Conclusão
O
título da obra pode sugerir, em um primeiro momento, que trata de um romance no
qual alguém ou um ser angelical entra em pecado. Talvez, para os conhecedores
das religiões que recorrem a arquétipos como diabo, anjos, pode dar a entender
que trata, por exemplo, da queda do Mal. No entanto, trata-se de uma novela, um
romance satírico que retrata um contexto social e político que representava bem
a sociedade portuguesa da época. Parece evidenciar nessa ‘queda’ a crítica às
mudanças e transformações sofridas por Portugal, mudanças essas muitas vezes
rejeitadas por aqueles que não queriam abrir mão dos valores e fundamentos que
regiam a sociedade daquela época. A ironia parece já estar evidenciada no uso dos termos ‘queda’ e ‘anjo’. Tal
ironia fica mais evidente à medida que o romance se desenvolve e os aspectos
cômicos e risíveis tornam-se menos cômicos ao longo da história. Logo no
início, quando a personagem principal, ainda na sua fase ‘anjo’ é um defensor
da tradição, suas atitudes se revestem de momentos que aludem à comédia, desde
à sua vestimenta até as atitudes mais drásticas. Na fase de transição e adaptação
ao contexto social e político da capital, ele continua a gerar risos, mas a
cada capítulo do livro, o narrador, Calisto e o leitor parecem entrar em uma
empatia que favorece a composição da personagem. De modo que ao final do
romance, que seria a concretização dessa queda, quando Calisto passa a viver em
uma situação de adultério com Ifigênia, inclusive, com a criação de filhos, o
que seria uma ‘queda’ para muitos é a mudança de paradigma para outros. Então
ficam as perguntas: ‘Queda ou libertação?’, ‘Queda para quem?’, ‘Anjo ou ser
humano?’, ‘Anjo para quem?’
REFERÊNCIAS:
CASTELO BRANCO, Camilo. A queda dum anjo. Disponível em: <https://www.luso-livros.net/wp-content/uploads/2013/09/A-Queda-de-um-Anjo.pdf> Acesso em: 21 abr. 2018.
Ficha Informativa de A Queda dum Anjo https://pt.slideshare.net/JooTeixeira4/ficha-de-apoio-quedaanjo.
Acesso em 12 abr 2018.